AUTORIDADE E AUTORITARISMO: UMA PERSPECTIVA PSICANALÍTICA
O episódio em que um comerciante de lãs silenciosamente pega o seu chapéu na sarjeta, após ter sido vítima da humilhação imposta por um jovem antissemita, não teria repercussão maior se tivesse ocorrido com outro que não Jacob Freud.
Na ocasião em que ouviu esse relato de seu pai S. Freud tinha apenas 12 anos. A cena é relatada no capitulo V da “Interpretação dos Sonhos” (1900), obra inaugural da Psicanálise. Caminhando pelas ruas, seu pai tecia considerações sobre a vida e como a Viena da segunda metade do século XIX era mais promissora que sua cidade natal.
- E o que fez o senhor? - perguntou o futuro pai da psicanálise.
- Nada, desci da calçada e apanhei meu gorro. - respondeu o pai com fala mansa.
As conseqüências dessa conversa, segundo autoanálise empreendida pelo próprio Freud e pesquisadores de seu legado, foram marcantes. Afinal, tratava-se de um pai forte e sábio flagrado em conduta nada heróica, aos olhos do então menino que levava pelas mãos.
A lembrança dessa cena infantil no âmbito da fundação do método psicanalítico ilustra o quanto a alternância entre a figura poderosa do pai, que encarna a autoridade, e a quebra dessa imagem está na base da estruturação psíquica. No inevitável desamparo de seus primeiros anos de vida, a criança precisa supor a existência de um ser todo poderoso que funciona como um sinalizador seguro de seus passos ainda trôpegos. Na fantasia das crianças pequenas os pais podem tudo...
Os pais sabem tudo até o dia em que os filhos começam a desconfiar... Para se constituir em sua singularidade psíquica, a criança confronta o pai heróico e onisciente do imaginário com aquele que supostamente se curva frente ao agressor. Pai e mãe são questionados e destituídos de poder para que o filho se aproprie de sua capacidade de pensar e existir.
Até a primeira metade do século XX, a ordem social definia lugares que não podiam ser questionados. No entanto, se na hierarquia familiar a palavra dos pais era soberana, a desilusão da criança é sempre inevitável. A infância e a adolescência começam a expressar sua inconformidade de modo ostensivo apenas na segunda metade do século, ao mesmo tempo em que se evidencia uma reordenação das relações familiares e sociais. As conhecidas cenas de rebeldia e enfrentamento podem ser lidas como o esforço do jovem para retirar as figuras parentais do lugar idealizado. Por sua vez, os pais são convidados a resistir a serem destituídos de seu posto de autoridade a fim de continuar a servir, inclusive, de porto seguro para as aventuras que o filho empreende pelo mundo afora.
Que aspectos psicológicos estão envolvidos nesse jogo em que uma pessoa se reveste de autoridade para se fazer obedecer por outra? Se entendermos autoridade como “o direito de se fazer obedecer” , depreende-se uma noção de lei subjacente a seu exercício que supõe, no mínimo, duas pessoas em relação hierárquica: uma legitimada por seu conhecimento ou delegação e outra que, reconhecedora e desejosa desse saber, coloca-se em posição complementar de obediência.
Novas fronteiras clínicas e teóricas são exploradas quando, em “Totem e Tabu” (1913), Freud toma da antropologia social a referência ao “banquete totêmico” para formular a origem das normas sociais e do processo civilizatório. Em inúmeros agrupamentos primitivos existe o culto ao Totem, um animal sagrado provedor de força e proteção para a tribo, que tem sua morte interditada. Em uma época do ano essa interdição é suspensa: o animal totêmico é sacrificado e em grande banquete festivo ele é ingerido por todos os membros do grupo, que assim recuperam suas forças.
No mito freudiano o Totem representa, em substituição simbólica, o pai da horda primitiva. Como macho mais forte, ele deliberadamente se apossa de todas as fêmeas e expulsa os demais. Esse pai tirânico e hostil, regido pelo imperativo da força e do desejo, é ao mesmo tempo um modelo invejado e temido pelos filhos. Porém, chega o dia em que os irmãos matam o pai e em seguida o devoram para que cada um possa se apropriar de uma parte de sua força.
Esse ato faz a passagem para o que seria a primeira forma de organização social. A morte do pai da horda exige que os irmãos, “iguais em direito”, se entendam no que tange ao poder, às decisões e privilégios. Regula-se, então, o acesso às fêmeas, estabelecendo-se simultaneamente o tabu do incesto e a exogamia.
Para a psicanálise, a interdição é um mandamento que nasce com a cultura e a civilização. E rege, sobretudo, a estruturação psíquica. Pensar a gênese do sentido moral na perspectiva do “Totem e Tabu” nos permite entender por que caminhamos sempre em terreno escorregadio: a inscrição do registro da lei, a interdição a que todos estamos submetidos tem como base um assassinato que não cessa de querer ser lembrado. O pai tirânico incessantemente quer vir à tona e talvez por isso o limite entre a autoridade e o autoritarismo seja tão frágil. Esta tensão nos obriga a viver em estado de alerta e às voltas com mecanismos de regulação não apenas no plano macro social, mas também naquele das relações interpessoais. No exercício da profissão, os legisladores e executores da lei sabem o quanto essa discriminação pode ser difícil.
A recorrente confusão no que tange a indesejáveis posições autoritárias leva alguns pais ao extremo oposto, a omissões que inevitavelmente reverberam em licenciosidades. As relações hierárquicas que pressupõem autoridade se beneficiam quando lugares e posições estão bem definidos e ao mesmo tempo podem se redefinir frente a novos contextos. Uma criança que insiste em colocar o dedo na tomada precisa de um não categórico. De nada valem explicações. Aquela que faz cenas de birra por não ter suas vontades satisfeitas, longe de ser ameaçada e humilhada, pode ser retirada da situação e protegida de sua temerosa onipotência infantil. Um jovem que clama por autonomia precisa ser escutado com respeito para respeitar os pais e obedecer a sucessivos acordos negociados para conquistar a confiança desses pais.
Quando um adulto age em função de seus próprios desejos, como a figura do pai tirânico, a contestação é esperada e até desejada, pois de outra forma a submissão poderá até resultar em seres impossibilitados do exercício da cidadania. Alianças inconscientes com a rebeldia ou com a submissão, via de regra, fazem o adulto fracassar no seu intuito educativo e dificultam relações interpessoais. Revisitar as figuras de autoridade, como fez S. Freud no percurso apenas esboçado, além de alavancar o autoconhecimento, pode abreviar rotas equivocadas.
A autoridade exercida com justiça é uma bússola preciosa que se transmite de geração em geração. O direito de se fazer obedecer e a obediência são facilitados quando existe a clareza de que, a rigor, quem manda também obedece como elo na corrente da transmissão da cultura. Quando o mestre ensina o aprendiz de motorista a parar no farol vermelho, é bom que ele se lembre que também está submetido à mesma regra. De outra forma, a crença na impunidade, aliada à onipotência, permite o vislumbre da horda e coloca a vida de todos em risco iminente.
Anna Mehoudar
anna_mehoudar@gampcursos.com.br
Psicóloga pela PUC
Márcia Arantes
marcia@vivazpsicologia.com.br
Psicóloga pela USP
Psicanalistas pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae
(artigo publicado na revista da AMATRA- Associação dos Magistrados do Estado de São Paulo)